sábado, 20 de fevereiro de 2016

Talento ou vocação? Os dois? Nenhum?

Qual o peso de uma análise autocrítica apurada e com baixo grau de parcialidade? Uma tonelada, talvez duas. Ou mais até. Que armas poderosas são a atenção com os desmandos (e sua mascarada fragilidade) do Ego e o senso de ridículo decorrente de tal consciência.
Quando não temos o receio e a arrogância de admitirmos nossas limitações, damos o primeiro e fundamental passo para fortalecermos nossas virtudes, purificar a psique e, por consequência, o caráter. Essas são fontes inesgotáveis de energia capaz de nos levar onde quisermos nesta vida. 
Várias vezes me peguei pensando, como voltei a fazer agora, nas coisas que realizei e realizo até hoje. Aí vinham as perguntas. No que realmente fui ou sou bom de verdade? Até onde eu poderia ou posso ir? Onde estão e quais são meus reais horizontes, não os desenhados e administrados pelo meu Ego, mas aqueles que minha alma enxerga?
Cheguei a algumas conclusões, que na verdade não encerram a reflexão, apenas a expande e a aprofunda ainda mais. A sensação é interessante. É bem boa.
Vou dar dois exemplos pessoais. Quando era criança, eu jogava bola. Joguei legal até os 13, 14 anos. Talvez um pouquinho mais. Minha praia eram as quadras, e o antigo futebol de salão, hoje futsal. Diziam que eu era bom, que eu tinha talento. De um tempo para cá, comecei a pensar muito sobre isso e admito: eu de fato tinha talento. Mas não tinha vocação. Aprendi muito com meu pai, mas minha relação com a bola sempre foi instintiva. Uma relação que me instigava a agir, a colocar para fora as frustrações e angústias de um menino. Não as de um menino qualquer, mas as minhas. As que eu imaginava serem só minhas. Sem ter a menor ideia, eu usava a quadra para sublimar minhas frustrações, pois lá eu me sentia livre, “imparável”, capaz de realizar tudo (ou quase tudo) que desejava. Mas ao mesmo tempo em que momentaneamente expulsava de mim um pouco do que comprimia o meu peito e me acovardava diante das incontáveis escolhas da vida, inconscientemente eu usava tais ações de energia e habilidade como uma solução (ineficaz) para minha falta de coragem no tentar e no crescer que esses movimentos de escolha proporcionam, pois via o erro como a razão para a rejeição, e eu não queria ser rejeitado. Por isso nunca quis me federar por algum clube, apesar dos convites. Eu me lembro de AABB, Monte Líbano, Carioca e Flamengo (em dois momentos e por técnicos diferentes). Rechacei todos, porque eu queria me preservar quase perfeito, e se me expusesse muito, minhas limitações por certo apareceriam e (descobri isso há pouco tempo) as decepções e rejeições do outro em relação a mim viriam junto.
Também voltei ao período em que me aventurei na música, e neste processo de retorno novamente fui até minha infância e identifiquei, claro, as inevitáveis associações com minhas insuportáveis inibições. Cheguei também sem muitas dificuldades a uma conclusão bem clara. Ganhei de presente e, sem maiores intenções, desenvolvi habilidades com a voz, porém concluí que jamais fui um cantor de verdade. Eu tinha as ferramentas (um timbre legal, punsh, extensão bem longa), mas não o ímpeto necessário para colocá-las em prática e torná-las verdadeiramente um talento. Muito menos tinha a vocação de entender o cantar como um indistinto prazer, uma explosão de energia, tal como eu via no futebol. Meu cantar não era instintivo, como quando jogava bola, e nem me proporcionava a valentia que sentia ao entrar numa quadra ou num campo de grama, onde eu era rápido, explosivo e me sentia quase imortal. Jamais consegui na música sublimar, e segui nela recalcando minhas dores e transformando-as em complexos, quando eu deveria agir justamente de forma oposta. Diferente do futebol, que eu sabia o que fazer e fazia, na música eu não conseguia realizar, porque eu tinha os recursos, mas não o talento para dar-lhes vida. Vejo isso hoje quando ouço muitas crianças e jovens cantando lindamente nesses The Voice Kids pelo mundo, como se cantar fosse tão natural como andar, falar, sorrir. Vejo no brilho dos seus olhos. Para elas, de fato é natural. Não para mim. Elas têm o instinto, mas também o talento e a vocação. Isso é perceptível demais.
Alguns podem imaginar meu pensamento como uma espécie de autoflagelo moral, mas é justamente o contrário. Não ter medo de olhar para dentro e enxergar as manchas que escurecem nossa essência é a forma mais valente de colocarmos em prática a vontade de acordar, levantar e caminhar em direção ao destino que cada um de nós tem o direito de traçar. É desta forma que podemos usar nossas qualidades instintivas e de fato transformá-las em talento realmente inato. Perdemos o receio da falha, do erro, e passamos a entender que um não que ouvimos não tem o poder de nos rebaixar, não significa um fim, e sim um sinal para um novo enfoque, talvez mais nítido, certamente mais maduro. E assim, toda a sensação de liberdade e invencibilidade que ganhamos com esse poder que vem de dentro vira antídoto contra qualquer temor, como uma antes tão assustadora rejeição, e se transforma em plena vocação, seja lá para o que for. Mas fundamentalmente a vocação de ser feliz.

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